Manifesto da Antropofagia na Sociedade Instantânea
Ainda hoje, quase cem anos depois, "só a Antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente".
"Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os
individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os
tratados de paz".
"Contra todas as catequeses". E contra a ideologia do quanto
pior melhor. Aliás, quanto melhor, melhor ainda...
A semana de 22 foi o primeiro movimento artístico e
cultural realmente significativo de afirmação da cultura brasileira pós
descobrimento. Até então éramos todos “colonizados” por uma decadente
corte européia, portuguesa e outras. Acreditávamos ser a cultura “erudita”
aquilo que vinha da Europa e ser algo menor, toda a cultura que vinha das
raízes brasileiras, indígenas, americanas ou africanas.
Os intelectuais paulistas da semana de 22 sacaram a
existência do fenômeno do canibalismo cultural. Os antropólogos, àquela altura,
já haviam descoberto que quando os índios antropófagos comiam os inimigos abatidos
em batalha, o faziam por respeito e não por fome… eles acreditavam que comendo a
outra pessoa eles poderiam assimilar o que essa pessoa possuía de valoroso.
Assim, para eles, a antropofagia era um ato de respeito e de assimilação das
qualidades do outro.
Dessa forma, o movimento antropofágico, acreditava que
era possível beber de todas as culturas e assimilar delas o que de melhor
havia, gerando produção cultural e artística que incorporasse o novo na cultura
nativa, a partir das raízes e do que de melhor houvesse nas outras culturas.
Mesmo antes da Internet e da era da informação instantânea, já haviamos percebido as principais características do
fenômeno da globalização cultural: a capacidade de assimilar antropofagicamente
outras culturas e produções culturais, sem perder a identidade de sua própria
cultura. Essa foi a principal importância da semana de 22, coisa que ainda hoje
é novidade para muitos Monteiro Lobatos.
O principal paradigma quebrado pela semana de arte de 22,
foi o senso comum de que as artes plásticas tinham que ser uma atividade
retratista da natureza e de uma pretensa realidade. Percebemos que as pessoas
não pensavam que a música (por exemplo) tivesse que ser a reprodução dos sons
da natureza. Ninguém defendia a tese de que uma música para ser boa tivesse que
ser a reprodução fiel e técnica dos sons de um riacho, de uma cachoeira, do
trinado dos pássaros ou ainda do som de uma buzina de automóvel. Se era assim
com a música, por que, afinal, a arte da pintura, por exemplo, tinha que ser
restrita à reprodução fiel de uma cena congelada, como queriam os pintores
acadêmicos? Por que as pinturas não poderiam representar um sentimento, uma
sensação, uma emoção, um conceito. Por que não admirar a beleza de uma
representação idealizada, intimista ou filtrada pela mente do artista de algo
que não deixava de ser menos real, como sua imaginação, seu sentimento, a
sensação luminosa, ou ainda sua própria loucura e devaneio?
 Contra os padrões impostos pelas normas canônicas da arte
pictórica acadêmica, construiu-se, a partir de então, um espaço cada vez maior
para a expressão artística que incluía as manifestações mais livres da arte
plástica. Criou-se um espaço de apreciação das manifestações impressionistas,
expressionistas, cubistas, dadaístas, surrealistas, naíves e, enfim,
modernistas. A partir de então, aponta-se
com vigor para o desenvolvimento de uma arte contemporânea baseada na
apreciação particular do sentimento estético de prazer visual, sem a restrição da
discussão elitista da forma e da técnica artística apenas. Aquilo que foi um
movimento de intelectuais e estudiosos influenciado por movimentos europeus, de
forma antropofágica, contribuiu para a criação de uma expressão artística
genuinamente brasileira, de geração pós indígena e pós colonial, acolhendo e
utilizando culturas europeias, indígenas e africanas, como de fato era a
constituição da cultura e do pensamento brasileiros. O Brasil sempre teve vergonha do seu status de sub
desenvolvido. Seja nas artes plásticas, ou na música, no teatro e na cultura em
geral, sempre tivemos uma tendência de idolatria ao que vem de fora, àquilo que
é consagrado principalmente na Europa ou mais modernamente nos Estados Unidos.
Quando isso não acontece, a superlativização do aspecto cultural se dá pela via
ideológica, aí privilegiando os movimentos esquerdistas ou filosóficos sejam
eles socialistas, anarquistas, orientais, da escola de Frankfurt, das raízes
indígenas brasileiras, de cultura latino americana. Todos esses aspectos
ideológicos, até mesmo pela sua própria condição de ideologia, são carregados
de paradigmas que formam a base proto religiosa dessas “crenças”. No
Brasil e em todos os cantos do mundo, as pessoas ainda precisam quebrar muitos
paradigmas impostos pelas ideologias, pelos costumes e pelos vícios derivados
dos impositivos econômicos, em prol do desenvolvimento do pensamento estético
livre e desatrelado das condições culturais restritivas. O estudo e a produção
cultural baseados nas raízes da cultura popular, antropofagicamente mixados com
as colaborações culturais absorvidas pelos meios de comunicações instantâneos
que hoje temos, é a fonte que naturalmente serve de inspiração para a detecção
dos paradigmas restritivos à criatividade. Toda e qualquer restrição deve ser
superada como forma de se desenvolver cada vez mais as possibilidades de
criação artística através de manifestações estéticas e prazeirosas.
 A estética, enquanto atividade filosófica, é muito
próxima da ética. Sem tentar estabelecer correlações apriorísticas podemos
sentir que um povo que tem um conceito desenvolvido de estética, tem mais
condição intelectual e cultural de desenvolver uma prática social baseada na ética. Esse é outro dos paradigmas que temos que quebrar rapidamente em nossa
sociedade brasileira: o conceito de que somos feios e imorais, de que os
políticos são sempre desonestos e de que as coisas não tem jeito mesmo. Já está
na hora de aprendermos a viver juntos de forma cooperativa e não na base do
conflito permanente. Nesse aspecto, a arte pode nos ajudar a encontrar o que
ainda existe de racismo, machismo, corrupção, oportunismo e intolerância na sociedade
brasileira, agindo como forma de denúncia, discussão e superação dessas
questões.
Outro paradigma que precisa ser quebrado com relação às
artes plásticas no Brasil, é o de que a arte é feita para as pessoas ricas ou
muito instruídas. A arte é somente uma forma de enfeitar as nossas vidas, de
dar um significado maior à própria existência humana e nem sempre é algo
inacessível, nem do ponto de vista cultural e nem do ponto de vista econômico.
Por isso é importante sairmos às ruas com arte, levando a manifestação estética
para todos, inclusive aqueles que raramente ou quase nunca frequentam uma
galeria ou um museu.
Que se faça a revolução Caraíba, enfim. Terminemos o
processo de amadurecimento do Macunaíma e que ele não mais seja um herói sem caráter.Somos sim antropofágicos! E viva o samba, a bossa nova, o
tropicalismo e o rock brazuca! E que as linhas e cores possam expressar aquilo
que lhes é próprio: o sentimento universal da beleza!
E que com isso a gente se divirta muito!
PontoArt – São Paulo de Piratininga, Ano 460 da
Deglutição do Bispo Sardinha.
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